Com diferentes características e histórias, os fantoches podem chamar a atenção das crianças. Na escola ou em casa, eles abrem caminho para diferentes aprendizagens, enquanto desenvolvem múltiplas funções, como memória, atenção, percepção, afetividade e imaginação.
Para a professora e pesquisadora Maria Silvia Librandi da Rocha, do programa de pós-graduação stricto sensu em educação da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Campinas, antes mesmo de falar sobre os fantoches, é preciso falar sobre linguagem.
O ingresso no universo da linguagem é algo que acontece desde o início da vida, com diferentes graus de apropriação e fluência. Essa aproximação permite que a criança aumente progressivamente a sua capacidade de conhecer, compreender e interpretar sentidos ao seu redor, e ao mesmo tempo contribui para a sua integração na cultura e na sociedade da qual participa. “É um caminho que exige uma atenção e uma escuta cuidadosas, uma partilha de atos de significação e de produção de sentidos permanente. E, sendo a família a nossa primeira fonte de relações sociais, antes mesmo da escola, esta será crucial no ingresso e na imersão da criança nessa produção”, destaca.
“É um caminho que exige uma atenção e uma escuta cuidadosas, uma partilha de atos de significação e de produção de sentidos permanente”
A questão torna-se, portanto, pensar em caminhos e estratégias para que as ações e produções criativas das crianças se concretizem, possibilitando que elas aprendam a imaginar e a criar. É nesse ponto que entram os fantoches, uma via rica e viável de ser apresentada e construída junto às crianças, conforme mostra o estudo feito pela pesquisadora em conjunto com a sua aluna de mestrado, Marcela Araújo: “O uso de fantoches e suas contribuições para a narrativa de crianças”.
Diferentemente do que diz o senso comum, conforme explica Maria Silvia, a imaginação da criança não é maior do que a do adulto. “Esta pode ser considerada uma visão romântica em relação à infância, pois a imaginação não é um talento ou uma capacidade inata. Ela também é construída e resultante de um trabalho de aprendizagem que se nutre e se transforma quanto mais ricas e múltiplas forem as experiências que tivermos”, argumenta.
Além disso, a professora ressalta que a imaginação enquanto função psíquica não serve apenas ao campo das artes, mas é crucial para todas as produções e transformações humanas, incluindo a ciência, a tecnologia e outras áreas da vida. Por isso, durante a primeira infância, merece receber toda a atenção, cuidado, tempo, espaço, material, mediação e contato, tanto nas práticas familiares quanto escolares.
O uso de fantoches na escola
Em uma escola pública de Niterói (RJ), a psicopedagoga Vania Vianna, professora do primeiro ano do ensino fundamental, decidiu explorar diferentes possibilidades de aprendizagem com o uso dos fantoches. Na sua sala de aula, Zaqueu é um menino negro, que veio de um país africano, onde a comida e os costumes são bem diferentes do que encontrou na região metropolitana do Rio de Janeiro, para onde mudou-se com a família. Ainda assim, quando apresentou o boneco para a turma, uma criança garantiu: “É igualzinho a mim”.
Outro integrante, Beto, é um menino que necessita de cadeira de rodas. Ele ajudou a despertar o olhar crítico das crianças para a questão da acessibilidade no entorno. “Como podemos empurrar a cadeira dele no parquinho?” Essa foi a questão que impulsionou uma reivindicação organizada junto à diretoria da escola, que conseguiu providenciar a instalação de uma rampa para tornar o espaço escolar mais acessível.
Tem também a Malala, que é um exemplo da luta das meninas pelos direitos à educação, e a Larissa, que é deficiente visual e estimula a turma a aprender Braille. A Helena, a Fada, a Cuca, a Nina, a Vovó Sissi e muitos outros fantoches nascidos no imaginário da professora ou inspirados em personalidades estão a postos para facilitar o percurso de alfabetização e aprendizagem dos alunos.
“O objetivo inicial é que o aluno aprenda a ler e a escrever, mas o potencial dos fantoches vai muito além”, explica Vania, destacando que não há limite temático para introduzir os fantoches na interação com as crianças. Eles podem ser adaptados a uma realidade que o adulto considere pertinente, mas não é um requisito.
“O objetivo inicial é que o aluno aprenda a ler e a escrever, mas o potencial dos fantoches vai muito além”
Ela garante que solidariedade, inclusão, empatia, afeto, cidadania e ética são valores transversais que emergem a partir do trabalho com os fantoches, e a criança leva essas aprendizagens para a vida. “Penso que estamos lidando com uma geração que irá trazer transformações sociais e culturais, e a escola e a família podem ajudar a prepará-las para isso”, argumenta.
Por conta da sua especialização em neuropsicopedagogia, psicopedagogia clínica e psicomotricidade (em curso), Vania reconhece a importância dos fantoches, como um recurso lúdico, para o desenvolvimento neuropsicomotor da criança. Ela destaca também o seu papel como contraponto a um universo eletrônico, tecnológico, em que todos estão presos ao celular ou em outras atividades passivas, que não favorecem a interação e a criação de vínculo. “Há um cuidado para que a sala de aula seja um espaço de escuta, e os fantoches são uma forma de conseguir isso em casa também”, comenta.
Apesar de usar os fantoches há alguns anos, principalmente no contexto escolar, a educadora conta que descobriu o interesse pelas histórias quando se tornou mãe. “Queria trazer esse mundo do faz-de-conta para os meus filhos, que hoje já são adultos”, conta. Por isso, dedica-se a aproximar os pais e cuidadores deste universo, enquanto trabalha com o fantoche no imaginário das crianças.
Na mais recente apresentação de um novo fantoche à turma, ela anunciou que ele, o Beto, chegaria na quinta-feira e que este era o dia do seu aniversário. Às famílias, ela enviou fotos do personagem no grupo de conversas por onde interagem. Uma das mães, ao saber do fato, ofereceu-se para fazer o bolo. “Mesmo sabendo que muitos não têm tempo, busco essa interação, porque é uma forma deles adentrarem o universo da criança, criarem laços. É importante para as crianças, que têm assim mais êxito na aprendizagem”.
No fim do ano, Vania traz todos os fantoches para a sala de aula e convida seus alunos a escolherem aquele com quem mais se identificaram e escreverem uma carta de despedida. Um deles escolheu Nina, a fantoche cujo nome começa com a mesma letra do nome da mãe dele. Uma escolha afetiva que o impulsionou a escrever a sua carta. “Até hoje, alunos que estão no quarto e quinto ano vem à antiga sala de aula visitar os personagens. Cria-se um vínculo.”
Como criar fantoches
Os fantoches não precisam vir prontos e a sua construção faz parte da brincadeira em família. Em sala de aula, Vania utiliza uma base pronta de feltro e depois vai incrementando com os elementos que quer trabalhar. A primeira letra do nome, acessórios e outros elementos caracterizadores. Mas ela também cria, com ajuda das crianças, fantoches com materiais recicláveis. Com itens simples, como rolo de papel higiênico, saquinho de papel e palito de sorvete já é possível soltar a criatividade, desenhando, colando lã, olhinhos e o que mais a imaginação permitir.
“É possível criar vozes, características e uma história para cada personagem, mas a criança sabe que o fantoche é um fantoche”
A seu ver, não é preciso que a pessoa por trás do fantoche esteja escondida. “É possível criar vozes, características e uma história para cada personagem, mas a criança sabe que o fantoche é um fantoche”. Ao apresentar um novo personagem, ela deixa que as crianças toquem nele e dialoguem. Gosta também de se caracterizar para a ocasião. Coloca uma peruca colorida, cria toda uma ambientação. “Assim, eles percebem que vai ter história naquele dia e já entram no clima. Isso é muito importante!”, destaca.
Para a educadora, não há nenhum requisito para quem quer experimentar, a não ser se permitir, dar espaço para a liberdade, a criatividade e o prazer. “Na verdade, eu me divirto tanto quanto os meus alunos!”, confessa.
Participação da família
Uma dica para as famílias que não sabem por onde começar é contar com a criança para a criação. “Ela mostra como quer fazer, tornando-se agente do próprio conhecimento”, diz Vania.
Segundo Maria Silvia, a família pode ir atrás dos interesses manifestos pela criança. Não se trata de ficar circunscrito a eles, mas aproveitá-los. “A ideia é transitar entre o já conhecido e o novo. Se a criança apresenta, por exemplo, um forte interesse em dinossauros, buscar histórias que incluam esses personagens pode ser um bom caminho de conseguir o seu envolvimento, porque já estamos contando com um elemento que faz seus olhos brilharem”. Depois, desenvolver o diálogo e criar novos personagens, como o filho do dinossauro, o inimigo do dinossauro etc.
O suporte da literatura infantil
Os fantoches também podem ser desenvolvidos com o suporte da literatura infanto-juvenil, como apresentado na pesquisa de Maria Silvia Librandi da Rocha e Marcela Araújo. Tudo começa na leitura da história, passa pela contação (uma outra forma de mediação) e chega à produção do fantoche, algo que permite o exercício da imaginação e da criação.
“Usar o livro é oferecer um suporte concreto para a criança”, indica Maria Silvia. Ela tem na narrativa uma base, a partir da qual pode começar a criar, trazendo para a sua representação pequenas falas e características do personagem. “Deixar a criança sem o suporte pode ser um dificultador. Quanto maior a necessidade de trazer sozinha elementos simbólicos figurativos, menos a criança pequena tem a possibilidade de pegar um elemento e atribuir a ele um significado diferente. Isso é uma ação de alta sofisticação, que requer maior experiência no deslocamento de significados. Uma criança mais velha pode já estar capaz, mas a pequena precisa de algum indicador a partir do qual a criação possa acontecer”.
“A partir das histórias lidas, as crianças podem construir réplicas ou novos personagens e criar caminhos para que o enredo se realize”, comenta a professora, destacando que não é o caso de negar a importância da reprodução, mas de incluir a possibilidade da transgressão e da transformação.
Em relação à escolha dos livros, a professora diz que não há resposta fácil, porque não podemos controlar os significados e sentidos que o outro vai produzir. A recomendação é que não se tenha a expectativa de que vai funcionar sempre e para todos, mas alguns critérios podem ser considerados.
Por exemplo, o livro não precisa ser necessariamente para crianças pequenas, mas se o texto for muito complexo ou muito longo, vai requerer uma adaptação. “Se este mesmo livro tiver ricas ilustrações, que permitam múltiplas interpretações, você pode arriscar, usando as possibilidades das imagens e ajustando a parte verbal, de modo que faça sentido para a criança”, recomenda.
Uma orientação importante é que o livro utilizado neste contexto seja literário, e não pedagógico. Ela justifica dizendo que, por mais importante que eles sejam no percurso da criança, não são livros que colaboram para alimentar a criatividade e a imaginação, pois estão orientados a uma resposta correta.
A professora também destaca a relevância dos fantoches e da literatura para uma experiência sensorial, perceptiva e afetiva mais rica na infância. “São experiências que estão reduzidas e fazem frente a outros dispositivos de formação e de entretenimento, como o uso aumentado de tecnologias e de jogos digitais, que também têm suas contribuições, mas é preciso lembrar que é na diversidade que conseguimos o enriquecimento psíquico. É algo que vem do plano externo e repercute no plano interno”, conclui, lembrando que a família tem um lugar privilegiado para furar bloqueios e compor novos caminhos.
Autora: Carolina Pezzoni
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.